Guia turístico de rios e córregos de São Paulo: ANHANGABAÚ

Mundo Codificado Editorial,   Arte de Nina Lins com Theatro Municipal em 1911 sobre mapa digital do Vale do Anhangabaú e arredores [Foto: Reprodução] Postado em 24/03/2025 - 6:46 Guia turístico de rios e córregos de São Paulo: ANHANGABAÚ A história do Ribeirão Anhangabaú é a história de formação da cidade de São Paulo e também a história do diabo encarnado em rio Yuri S.,

O geógrafo Johannes de Laet (1581-1649), diretor da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, concordava com o naturalista alemão Georg Marcgraf (1610-1644) ao escrever: Juripari et Anhanga significant simpliciter diabolum [Jurupari e Anhanga significam simplesmente diabo]. Nas tentativas de sistematização das cosmogonias indígenas por parte dos europeus, Anhanga ficou registrado como um espírito que encarnava em um veado com olhos de fogo e protegia os animais contra caçadores. Com o tempo, o Anhanga da Região Sudeste ficou associado ao Jurupari dos mawé da Amazônia, talvez porque, de acordo com alguns, Jurupari haveria criado espíritos denominados Anhangs.

Mas nem Anhanga nem Jurupari eram o diabo. Antes de ser convertido à figura do mal, Jurupari era adorado pelos mawé. Anhanga era um protetor da sua espécie, uma figura totêmica que ligava os espíritos dos animais aos indígenas caçadores. Em Poranduba Amazonense, coletânea de histórias indígenas transcritas, publicada em 1890, João Barbosa Rodrigues escreve que os padres usavam das perturbações dos indígenas para os convencer de que estavam sendo assombrados pelo demônio. Era um truque catequético para que os povos acreditassem que seus cultos eram frutos do mal absoluto. Foram os europeus que trouxeram o diabo a esta terra.

A história do Ribeirão Anhangabaú é a história de formação da cidade de São Paulo, onde sua primeira vila católica se estabeleceu. É também a história do diabo encarnado em rio. Hoje estamos catequizados, civilizados, urbanizados – e possuídos. Este guia não lhe dará o caminho do rio pelo espaço, mas pelo tempo: iremos do presente até o passado, para descobrirmos a origem do mal absoluto.

Novo Vale do Anhangabaú em 2020 [Foto: Fábio Tito/G1/Reprodução]O NOVO
Atualmente, o Vale do Anhangabaú está inteiro concretado. As fontes de chão, que jorrariam 852 jatos d’água para refrescar os transeuntes, não funcionam. Skatistas, ciclistas e outras pessoas sobre rodas usam a superfície lisa e contínua do parque para praticar nos dias em que ele não está ocupado pela programação de domingo, que inclui oficinas, apresentações de dança, shows em palcos montados sob o Viaduto do Chá, batalhas de rap e slam, ensaios abertos. Espalhado pelo Vale em telas de LED está o branding do projeto: Novo Anhangabaú. O espaço foi inaugurado em 2021, após uma reforma de 105 milhões de reais que durou dois anos e foi adiada sete vezes. O espaço está atualmente cedido para o consórcio Viva o Vale. O resultado da obra milionária é, obviamente, decepcionante, já que o resultado prático é um grande espaço liso, com bancos ao redor, nenhuma árvore para fazer sombra e com poucas atrações nos arredores imediatos que vitalizem o lugar. Edifícios históricos privados – e fechados – e prédios comerciais ocupam a maior parte das ruas laterais. Próxima ao Viaduto do Chá, temos ao menos a visão verde da Praça Ramos de Azevedo, onde o conjunto de estátuas feitas pelo Italiano Luigi Brizzolara termina em outra fonte seca.

Foto de monumento de Luigi Brizzolara e instalado em 1922, parte de seu conjunto em homenagem a Carlos Gomes. A fonte d’agua ja existia na escadaria de acesso ao Theatro Municipal desde sua inauguração [Foto: Yuri Sugai/ celeste]PERI E CECI
Antes de 1911, data da inauguração do Theatro Municipal de São Paulo, a atual Praça Ramos de Azevedo era o Morro do Chá, um terreno remanescente das terras do Barão de Itapetininga, reservadas ao cultivo de chá preto. Nomeada em homenagem ao arquiteto do Theatro Municipal, a praça foi feita para uni-lo ao Vale do Anhangabaú por meio de escadarias. Organizadas como uma narrativa ascendente, as esculturas espalhadas por lá foram feitas na Itália por Luigi Brizzolara, uma encomenda importada do município para homenagear o compositor de ópera Carlos Gomes. Elas representam a sua figura, centralizada na praça em frente às escadas, e os personagens de suas principais composições. Localizado bem em frente às escadarias está Peri, o herói d’O Guarani.

Estátua de Peri na Praça Ramos de Azevedo [Foto: Mike Peel via Wikicommons]Na ópera e no livro, Peri é apaixonado por Cecília, aristocrata e europeia. Ceci, como é chamada, é uma filha fictícia do proprietário de terras Antônio de Mariz, um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Peri, também fictício, casa-se com ela com a condição de se converter ao cristianismo. Poderíamos nos deter em todo o conteúdo ideológico de servitude, conversão e falsa pacificidade entre indígenas e colonizadores, mas o que nos interessa é que o romance entre Peri e Ceci é a inversão completa de uma história real, ocorrida há muitos anos antes nas margens do Anhangabaú. Como uma pista de sua falsidade, o Peri-estátua tem feições de homem branco.

[Foto: Reprodução]

DESVIOS
A Chácara do Chá, herdada pelo Barão de Itapetininga de seu tio, estendia-se por todo o Vale do Anhangabaú e ruas próximas, passando da Praça da República e chegando na Avenida São João. Os moradores da região eram obrigados a desviar do imenso território delimitado para atravessar o rio (hoje soterrado) pela (agora inexistente) Ponte do Lorena. Foi por pressão do município que o Barão cedeu um trecho de terra para construir uma rua, a Formosa, que hoje faz parte do Vale.

Já o Viaduto do Chá, o primeiro viaduto da cidade, foi construído pela prefeitura anos depois sob intenso protesto do Barão de Tatuí, casado com Corina, viúva do outro Barão. O motivo? A obra urbana necessitava da demolição do solar do casal. Ao sair a notícia de que a Justiça havia ficado do lado da prefeitura, a própria população foi até o solar e adiantou a demolição com picaretas e marretas, expulsando o Barão e a Baronesa dali.

Vista geral da cidade de São Paulo (1827), de Jean-Baptiste Debret [Foto: Reprodução]UMA MULHER FOI FURTADA AQUI
Do lado oposto do Vale encontramos o Palácio dos Correios, uma das muitas construções do Escritório Ramos de Azevedo no local. Hoje tombado, o edifício deixou de ser sede da instituição há 50 anos, mas ainda podemos ler “correio” e “telégrafos” entre suas muitas janelas. Hoje abriga um pequeno Centro Cultural dos Correios em uma fração do prédio e a prefeitura da cidade tenta transformar o resto em um “espaço multiuso”, com “centro esportivo, sala de exposições, coworking, restaurantes, sala de games”, um pot-pourri típico de gestões urbanas que confundem revitalização com novidade.

Ao lado do Palácio temos a Praça Pedro Lessa, de onde se acredita que uma escultura foi furtada. Em 2019, Diana Caçadora, uma cópia feita na década de 1940 da escultura exposta no Louvre, sumiu. Até hoje, ninguém sabe seu paradeiro – quem a furtou ou se, porventura, a Diana se cansou dali e resolveu ir embora.

Em seu lugar, ativistas do movimento negro pleitearam uma escultura em homenagem a Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, arquiteto responsável pela tecnologia de construção em taipa na São Paulo do século 18. Escravizado, Tebas quase teve sua contribuição arquitetônica e mesmo sua existência apagadas da história. A homenagem ocorreu, mas na Praça da Sé; o lugar de Diana Caçadora permanece vazio.

VERMELHA TORRENTE FEDORENTA
A região do Ribeirão Anhangabaú é cheia de primeiros marcos da história da cidade – afinal, foi ali a sua fundação. Sobre as suas águas existiu também um dos primeiros matadouros da cidade, na então Rua do Curral. Os animais eram mortos nas margens e o sangue escorria para as águas, onde depois se atiravam seus restos mortais. Disso resultava uma preocupação sanitária e um cheiro putrefato.

Em História dos Bairros de São Paulo (1979), Nádia Marzola dedica às páginas sobre o Anhangabaú uma seção inteira sobre o matadouro, construído em 1773. De lá vinha toda a carne consumida na cidade. Ela escreve: “Os moradores do Piques, do Acú e da zona da Ponte da Constituição, por onde ele (o Anhangabaú) passava, assistiam a partir das duas horas da tarde ao deslizar da vermelha torrente fedorenta”.

Fundação de São Paulo, 1554 (1909), por Oscar Pereira da Silva [Foto: Museu Paulista da Universidade de São Paulo/ Reprodução]O ENCONTRO
O Ribeirão Anhangabaú corre (debaixo da terra) pelo Vale e segue onde está a Avenida Prestes Maia, virando para a Rua Carlos de Sousa Nazaré, até desaguar no Rio Tamanduateí. Antes de São Paulo existir, havia no planalto formado entre ambos a aldeia Inhapuambuçu, que por vezes era chamada com o nome que seus habitantes usavam para o Tamanduateí: Piratininga.

Chefiada pelo Morubixaba Tibiriçá, a aldeia acolheu o português João Ramalho, formando assim um vínculo com os dirigentes portugueses e os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Tibiriçá era simpático ao cristianismo e se converteu, sendo batizado de Martim Afonso em homenagem ao fundador de São Vicente, primeira vila colonial. Juntamente com os indígenas, os jesuítas fundaram, em 1554, o Colégio de São Paulo, do qual remanesce o Pátio do Colégio. Foi nas terras desse encontro – entre Anhangabaú e Piratininga e entre indígenas e portugueses – que os missionários fundaram a primeira vila do que viria a ser a cidade de São Paulo: São Paulo dos Campos de Piratininga.

Hoje, Tibiriçá é homenageado como herói fundador da cidade por ter abrigado, protegido e se aliado aos jesuítas. Sua imagem é como a de Peri: o bom indígena, convertido ao cristianismo, em convivência pacífica com os colonizadores europeus. Em sua época, era um líder respeitado, cujos descendentes viriam a se tornar partes principais da elite paulistana. Nessa história, não é o homem branco que vai ceder sua filha para um casamento por amor, como acontece em O Guarani. É Tibiriçá que cede a mão de sua filha, Bartira, a João Ramalho – um casamento político. As narrativas pacíficas deixam de lado a circulação de mulheres durante o processo de pacificação. Ignoram também os eventos de 1562, quando o colégio jesuíta foi atacado sob os gritos de “jukaí karaíba”. Jukaí seria traduzido como “matar”, e karaíba, “sábio”, termo usado para os homens brancos: “morte aos europeus”.

O conflito ficou conhecido como Cerco de Piratininga. Comunidades indígenas vizinhas (Guarulhos, Guaianás e Carijós) se organizaram para expurgar os colonizadores e cessar sua missão expansionista e catequizante em suas terras. Foi nesse episódio que Tibiriçá se tornou “herói de São Paulo”: sob sua liderança, os assentados derrotaram os seus vizinhos. Durante a guerra, Tibiriçá mata seu irmão, Piquerobi, líder da aldeia Guaianás de Ururaí. Afinal, o maior heroísmo de Tibiriçá foi lançar as outras tribos a um futuro incerto. Sobre os Ururaí, Frei Gaspar da Madre de Deus escreve dois séculos depois, em meados de 1700: “Hoje, quase nada possuem os miseráveis índios descendentes dos naturais da terra; porque injustamente os desapossaram das suas terras”.

Planta da Cidade de São Paulo feita em 1807 pelo engenheiro militar Rufino Felizardo e Costa, onde vemos os córregos Saracura e Bexiga e o ribeirão do Itororó confluindo no ribeirão Anhangabaú, que por sua vez deságua no Tamanduateí. Em verde, o colégio dos Jesuítas, abaixo da região atual do Vale [Foto: domínio público]

COMEÇAR TUDO DE NOVO
No mesmo ano do Cerco de Piratininga, morre Tibiriçá, vitimado por uma peste disentérica. A data de sua morte é 25 de dezembro, dia do nascimento de Jesus, uma ironia do destino. Ou, talvez, uma ironia do próprio Anhangabaú, que muitos diziam ser responsável por espalhar doenças. As forças fundadoras de São Paulo, porém, riem por último: em 1893, começam as obras de saneamento do ribeirão, que incluem a sua canalização subterrânea.

A “origem do mal” só existe quando ele já se tornou objetivamente real, envolvendo todo o passado em uma teleologia macabra, e então apontamos para um momento no tempo e pensamos: “Foi aqui que tudo deu errado”. É fácil ser vidente em retrospecto. Porém, imaginemos um fim para outro começo. O que existiria no Vale do Anhangabaú se Morubixaba Tibiriçá tivesse escolhido acreditar em Anhanga em vez de Deus? Aí sim, é difícil ser vidente ao tentarmos dar conta das variáveis de um universo paralelo. Talvez o Ribeirão Anhangabaú não fosse a origem do mal absoluto, mas sim onde animais se reúnem para beber água, protegidos por Anhanga e pelos povos que coexistem na beira do rio. E talvez não houvesse mais Ribeirão Anhangabaú, porque o seu nome tupi teria sido apagado à força. Restaria apenas o seu espírito, prestes a se vingar de nós.

Tags   cultura indigena   Guia turístico   historias indigenas   psicogeografia   Theatro Municipal De São Paulo   vale do anhangabaú   yuri sugai  Visite seLecT para ler a matéria completa.
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