Registro de crimes de menor potencial ofensivo eleva tensão entre polícias de São Paulo
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo ainda não publicou a conclusão do grupo criado para discutir a implementação do Termo Circunstanciado (TC) pela Polícia Militar. O registro dos crimes de menor potencial ofensivo - que gera o TC - é responsabilidade da Polícia Civil. O trabalho no estado foi concluído em setembro, mas até o momento a decisão sobre o assunto não foi tornada pública. O grupo, criado no mês de abril, tenta amenizar o conflito entre as corporações.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), planejava autorizar policiais militares a registrar crimes de menor potencial ofensivo, função exercida pela Polícia Civil no estado. O anúncio acarretou uma onda de protestos dos policiais civis nas redes sociais.
A equipe designada a avaliar o assunto incluiu membros da Secretaria da Segurança Pública e das três polícias: Civil, Militar e Técnico-Científica. Previsto inicialmente para durar 45 dias, o prazo foi estendido por mais 60 dias, com término em 4 de setembro. Segundo apuração da Gazeta do Povo, foram realizadas mais de 10 reuniões em meio a um clima tenso entre os participantes, sem cessão de nenhum lado.
A Secretaria da Segurança Pública afirmou que o relatório final foi apresentado às autoridades, mas não informou quando será divulgado. "As atividades do grupo de trabalho foram concluídas e os resultados dos estudos de viabilidade para a implantação do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) pela Polícia Militar e do boletim de ocorrência unificado encaminhados para análise das autoridades competentes. Ao final dessa etapa, os resultados serão divulgados", informou a pasta.
A medida de transferir o TC da Polícia Civil para a Militar é uma vontade do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite. No entanto, delegados ouvidos pela reportagem são contra a medida por avaliarem que “a Polícia Civil está perdendo poder e função”.
“Há uma briga entre as polícias”, diz pesquisador que participou do grupo de trabalho
Leandro Piquet Carneiro, coordenador da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP), foi convidado para participar de uma das reuniões do grupo. Em entrevista à Gazeta do Povo, Carneiro destacou o conflito entre as polícias.
"Participei do grupo de discussão em São Paulo e no Paraná, mas lá o processo foi mais longo e envolveu a definição dos procedimentos. O Paraná usou como referência o processo do Rio Grande do Sul. Ao contrário de São Paulo, nesses estados as polícias Militar e Civil compreenderam desde o início a importância do Termo Circunstanciado. Não houve tensão, e sim cooperação e troca de informações".
Carneiro, favorável à mudança, aponta as vantagens que considera sobre a medida. "O principal benefício é melhorar o atendimento às vítimas, evitando o deslocamento até a delegacia em casos de menor gravidade. A rapidez e praticidade facilitam o processo, resultando em mais viaturas disponíveis nas ruas, já que não precisarão ir até a delegacia".
O pesquisador ressalta que, muitas vezes, as vítimas não dão prosseguimento ao registro indo até a delegacia para registrar a ocorrência, o que resulta na perda de dados sobre crimes e, consequentemente, impacta negativamente na estratégia de repressão a ser colocada em prática pelas forças policiais. "Isso (o TC pela PM) aumentará o volume de informações que ajudam no planejamento da segurança. É fundamental saber onde os crimes ocorreram, as circunstâncias e as características das vítimas, informações que muitas vezes se perdem porque a vítima não vai à delegacia. Com o TC, é possível reter essas informações".
Do outro lado, membros da Polícia Civil consideram que os PMs não têm formação adequada para tipificar os crimes. "Há o risco de um PM mal treinado registrar o caso de forma inadequada, causando prejuízos à vítima por erro na tipificação. No entanto, um bom treinamento pode resolver isso", aponta Carneiro.
Outro ponto de divergência, segundo policiais civis, seria a perda do poder de investigação da corporação. Carneiro rechaça a interpretação. "O fluxo da investigação não será alterado, apenas o local do registro inicial da ocorrência. Depois disso, o caso é encaminhado à Polícia Civil, que tem acesso ao mesmo sistema e pode até mesmo revisar a tipificação utilizada".
Questionado sobre o motivo do adiamento da conclusão dos trabalhos, o pesquisador atribui ao conflito entre as polícias. "Estão tentando um consenso, o grupo está estudando uma solução. Não presenciei nenhuma briga, mas todos defendem suas posições. Não houve um debate mais acirrado, mas também não houve avanços; ninguém mudou de posição", resume ele.
Sindicato dos delegados critica grupo de trabalho da secretaria
Jacqueline Valadares, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), considera ilegal a transferência de funções. "O sindicato é contra a transferência de atribuições da Polícia Civil para a Militar, pois considera ilegal. A lei deixa claro que o trabalho investigativo é da Polícia Civil, e o Termo Circunstanciado também é um trabalho de investigação."
Estados como Paraná e Rio Grande do Sul já adotaram o modelo de TC para a PM há anos. Além disso, a Secretaria da Segurança Pública paulista argumenta que os PMs perdem horas na delegacia para registrar uma ocorrência, e esse novo modelo seria mais ágil. "Cada estado tem uma realidade. Em 2023, São Paulo registrou uma média diária de 66 TCs. Considerando os 645 municípios do estado, isso representa 0,1 TC por município. É um número insignificante, não é isso que sobrecarrega a PM", defende Valadares.
O órgão estadual rebate os dados do sindicato, afirmando que o número de TCs produzidos pela polícia no estado é muito maior. De acordo com a pasta, o total de termos circunstanciados elaborados de 2019 a 2023 foi:
A representante do sindicato aponta que, antes de alterar a atribuição da categoria, o governo paulista deveria deslocar mais policiais militares das funções administrativas para o policiamento nas ruas. E aproveita para criticar a composição da pasta estadual dedicada à área. “A Secretaria da Segurança Pública é chefiada por um PM, composta por vários policiais militares e que está governando para a PM”, protesta ela.
O governo do estado reitera, como argumento, que o TC nas mãos da PM tornaria o atendimento mais rápido, evitando que a vítima perca horas na delegacia. Valadares coloca um contraponto: "Temos o Sistema de Polícia Judiciária (SPJ), que visa acelerar o processo para que a pessoa não perca tempo na delegacia. O PM faz o registro na rua com a vítima e encaminha para a delegacia. A intenção da PM é atender a ocorrência e encaminhá-la diretamente ao judiciário, sem a participação da Polícia Civil".
A secretaria afirma que fará treinamento com os policiais para que saibam tipificar os crimes. "Curso de um dia, seguido de uma prova de 15 questões, não é suficiente para decidir a vida de uma pessoa. Os delegados têm formação de oito ou nove anos para fazer isso", diz a presidente do Sindpesp.
Por fim, a delegada destaca que a polêmica do TC agrava o conflito entre as corporações. "Estão criando uma grande instabilidade na segurança pública, colocando duas instituições que deveriam trabalhar em harmonia em posições opostas. Isso gera um conflito, quando a secretaria deveria unir o trabalho dessas polícias".
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