Quem são as pessoas que mantêm viva a tradição das corridas de canoa caiçara
Remar uma canoa caiçara exige foco, equilíbrio e flexibilidade, já que a remada é feita em pé, e a falta de atenção pode fazer com que a embarcação vire (ou emborque). O remador ou remadora deve se ajustar rápido a movimentos imprevisíveis. A cada remada, fincando o mar com força, quem rema completa o percurso de ida e volta até a areia. É assim que acontece no dia a dia, já que a embarcação é um meio de transporte tipicamente caiçara. E também durante as tradicionais corridas de canoa, que existem há décadas no litoral norte de São Paulo.
Para o sociólogo caiçara Charles Medeiros,tudo o que envolve a canoa é mais do que parece – inclusive a própria canoa. “É mais do que uma simples madeira que se transforma em barco; a canoa é parte da vida, da essência, da cultura e da memória do povo caiçara, não apenas de Ubatuba, mas de todo o litoral. É isso que confere personalidade à canoa: cada uma é única”, conta, durante uma etapa do Circuito de Corrida de Canoa Caiçara de Ubatuba (SP), no litoral norte.
Canoas caiçaras em Ubatuba (SP) — Foto: Felipe AbílioNão por acaso, muitos pescadores dizem que, para vencer uma prova, 50% é mérito da canoa e 50% é mérito do remador, como detalha o livro “Com quantas memórias se faz uma canoa”, das pesquisadoras Maria Angélica Oliveira Gonçalves e Débora Olivato. A obra é resultado de um projeto de catalogação da região, feito entre 2007 e 2008, que registrou 420 embarcações à época.
Não se sabe a quantidade exata atualmente, mas a continuidade dessa prática, que remonta aos pescadores da região, é fundamental para manter tanto a preservação da cultura caiçara quanto o equilíbrio ecológico local.
“Quando você está aqui e olha ao redor, vê que todos se abraçam, se encontram e aproveitam juntos. Depois, partimos para uma competição que, no fundo, é um congraçamento de amizade”, diz Medeiros.
O sociólogo caiçara Charles Medeiros em sua canoa — Foto: Felipe AbílioCanoa, um meio de comunicação
O livro “Com quantas memórias...” relata que, em uma tarde de julho de 1957, o professor Joaquim Lauro Monte Claro Neto observava os pescadores em suas canoas fazendo o cerco a cardumes de tainhas em uma praia. As canoas são uma herança dos tupinambás, primeiros habitantes da região. A Aldeia Iperoig, atual Ubatuba, fazia parte dessa região, onde ocorreu o acordo conhecido como “Paz de Iperoig” em 1563, um importante evento da história do Brasil – ocasião na qual a Confederação dos Tamoios, a primeira organização indígena a negociar politicamente com os portugueses, foi enganada no pacto de não agressão.
Assim como os caiçaras, fruto da miscigenação entre negros, indígenas e europeus, que habitam desde o litoral fluminese até o paranaense, a engenharia da canoa também absorveu várias culturas. “Os caiçaras transformaram a canoa, usando a proa dos tupinambás e a popa das grandes naus portuguesas, tornando-a uma ferramenta híbrida”, explicou Medeiros.
Paisagem em Ubatuba (SP) — Foto: Felipe AbílioEssa aerodinâmica contribui para a fluidez do veículo. É o que Joaquim Lauro observou naquela tarde de 1957. Na ocasião, a pescaria tinha sido farta, e todos estavam satisfeitos. O professor, então, ouviu um dos pescadores provocar o outro, sugerindo uma corrida aquática até o armazém para tomar pinga. “Vamo ‘porfiá’?”, desafiou. “Porfiar” é um sinônimo para “competir”.
“Eu peguei a minha bicicleta e vim esperá-los aqui na capela, que era onde eles aportavam. Escuta, se faz tanta prova por aí, aqui mesmo em Ubatuba. Por que não se faz uma corrida típica do local? E deu a ideia de fazer a corrida de canoa”, disse o professor, em entrevista, em 1986, no documento “Ubatuba: História Oral”, da Fundart (Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba).
Em setembro de 1957, aconteceu a primeira corrida de canoa da cidade. A embarcação vencedora foi a canoa Maria Comprida. E, tamanho o sucesso, ela virou símbolo de velocidade. Nos anos 1960, depois de um hiato de cinco anos, os pescadores e moradores presenciaram a expansão da modalidade, chegando até outras cidades, como a vizinha São Sebastião, que passou a dominar a categoria de cinco remos — para lamento dos ubatubanos. Para não ficar para trás, o professor Joaquim Lauro sugeriu a construção de uma supercanoa.
“Fomos buscar essa madeira lá no alto da serra. Conseguimos trazer com grande dificuldade, auxiliado por todos os remadores e algumas pessoas do bairro, e fizemos a canoa”, relatou o professor, explicando a origem da nova Maria Comprida, uma recriação da original, que venceu a primeira corrida, e se consolidou como a principal vencedora das competições seguintes. A Maria Comprida ganhou ainda mais notoriedade ao fazer a célebre travessia de Ubatuba a Santos em 22 horas (sem contar as paradas), em 1973. Até hoje, ela permanece como a canoa mais famosa da região, agora sob a guarda da Fundart.
O interesse pelas corridas, no entanto, diminuiu nos anos 1980, após o afastamento do professor Joaquim Lauro. Em 1992, foi o folclorista Ney Lopes, da Fundart, quem assumiu a organização da maioria das competições, até sua morte, em 2007.
Praia em Ubatuba (SP) — Foto: Felipe Abílio As corridas de canoa aproximam as pessoas, muitas até descobrem parentes por meio delas. A corrida é uma celebração onde todos se divertem, conversam e ouvem o fandango — Mario Gato, co-fundador da Associação de Amigos e Remadores da Canoa Caiçara (AARCCA)Em 2014, os moradores organizaram a Associação de Amigos e Remadores da Canoa Caiçara (AARCCA). “Inicialmente, seria uma associação de remadores e jogadores de futebol, um clube. Mas a ideia evoluiu”, explica o historiador Mario Gato, um dos fundadores da AARCCA, militante do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e representante de Ubatuba no comitê do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Segundo ele, a associação ajuda a dar mais visibilidade à história da canoa, organizar melhor as provas e possibilitar o acesso a recursos, como os do PROAC, para fortalecer e fomentar a cultura caiçara.
“As corridas de canoa aproximam as pessoas, muitas até descobriram parentes por meio delas. A corrida é uma celebração onde todos se divertem, conversam e ouvem o fandango [música típica caiçara]”, explica Gato, que também é músico. “A história da canoa está no centro de tudo, pois ela não é só um meio de transporte, mas também de comunicação.”
Praia em Ubatuba (SP) — Foto: Felipe AbílioEm 2020, o pescador e instrutor de canoa Helbert Ramon – neto do lendário pescador e campeão de corridas Seu Gino – criou a escola Cernes, a fim de expandir a cultura caiçara. “A base do estilo de remo caiçara já está muito bem estabelecida. "Minha família já rema há muitos anos, mas sem um estudo aprofundado da técnica. Agora, estou introduzindo o estudo da remada, buscando maneiras de otimizar o desempenho e evitar lesões”, explica o instrutor, que também tem se dedicado ao estudo da educação física.
Nos últimos anos, o número de mulheres que remam cresceu. “No começo, até na própria associação, muitas vezes sobravam canoas porque faltavam mulheres para remar. Hoje, a situação é inversa: há muitas mulheres prontas para remar e, às vezes, falta canoa”, comenta Ana Carolina Santana Barbosa, membro da diretoria da AARCCA e Militante do FCT. “Se houvesse mais canoas disponíveis, ainda mais mulheres estariam participando. Isso é um ponto positivo para a tradição.”
Memória de um tempo
Apesar do reconhecimento, vários fatores ameaçam a continuidade das canoas. Entre eles, está a proibição da construção de ranchos nas praias, que limita a proteção das canoas contra intempéries. Sem esses abrigos, a madeira pode rachar ou se deteriorar. Outro fator é o aumento dos preços, com as canoas chegando a custar entre 10 e 50 mil reais, a depender da madeira e do tamanho.
População caiçara durante as tradicionais corridas de canoa — Foto: Felipe AbílioAlém disso, a escassez de mestres canoeiros é uma preocupação crescente. Embora nomes como Manoel Neri Barbosa (Baéco) e Renato Bueno atendam essa demanda, é essencial que as gerações mais jovens se interessem pela tradição.
A legislação atual, que limita o corte de árvores, também dificulta a criação de novas canoas. Ubatuba, com cerca de 102 praias, tem 83% de seu território ocupado pelo Parque Estadual da Serra do Mar, que abriga uma Mata Atlântica exuberante. O bioma está em 17 estados, e abrange cerca de 15% do território nacional, do Piauí ao Rio Grande do Sul. Mas, segundo o Mapbiomas, apenas 24% da sua vegetação original é preservada. Leis que restringem o desmatamento são, portanto, fundamentais. E devem ser acompanhadas de um diálogo efetivo com as comunidades locais. Atualmente, para obter madeira para a construção de uma canoa, por exemplo, é necessário aguardar a queda de uma árvore e, em seguida, receber uma permissão de retirada – que pode levar anos para chegar.
“Não podemos simplesmente impor questões ambientais às comunidades tradicionais. É essencial que, dentro dessas comunidades, as pessoas ofereçam instruções e sugestões sobre como proceder. O protagonismo local é fundamental nesse processo”, explica a educadora socioambiental Lidi Keche, coordenadora da ONG Tamoio de Ubatuba.
Um exemplo é o projeto “Plante uma canoa”, criado pelo pescador caiçara Carlos Bastos Xavier, o Carneiro. “Se a Serra do Mar continua preservada até hoje, é porque o caiçara soube como usar a terra”, explica. Após estudar a árvore guapuruvu, ele criou uma técnica eficiente de produção de mudas, que já gerou mais de 300 plantios nos últimos anos. A espécie foi escolhida estrategicamente, pois, em cerca de 40 anos (tempo considerado rápido), ela tomba por conta “própria”, devido à ação de um fungo. Isso não é necessariamente ruim, já que garante a continuidade da construção de canoas ao longo do tempo.
“O objetivo é fazer com que futuras gerações de caiçaras tenham acesso ao guapuruvu”, explica Carneiro, que lamenta a falta de investimento. “Sei que dá certo porque eu fiz e consegui. Hoje, tem um monte de guapuruvu plantado na Serra do Mar, mas faltam parcerias para ajudar a manter.”
A fim de garantir sua sobrevivência, o caiçara depende tanto da terra quanto do mar. De acordo com a Secretaria Municipal de Pesca e Agricultura, Ubatuba possui cerca de 2 mil pescadores registrados. O respeito às tradições e a transmissão de conhecimento entre gerações é fundamental para a preservação não apenas dessa cultura, mas também das matas e dos oceanos. Como lembra Lidi Keche, a qualidade das águas é um fator que afeta tanto pescadores e moradores, quanto turistas, empresários e comerciantes. As corridas de canoa caiçara são uma forma de conscientizar sobre isso. “O caiçara hoje é um grande multiplicador de conhecimento e das lutas pela balneabilidade. Somos um quando o assunto é água”.
Em “Canoa emborcada” (Ed.Caravana), utilizando uma linguagem informal, o autor caiçara Santiago Bernardes dá voz a uma senhora que conversa com seu neto — mas que poderia ser a voz da própria canoa: “Eu sô a memória di um tempu, mais logu serei a lembrança na cabeça dus qui ficam i serão também a memória du seu tempo. U qui uma geração aprendi fica pra otra pra uso i sustentu. Assim nóis vivêmu. Por muitu tempu i num sabemu quantu mais anssim viverão us nossu”.
Esta reportagem foi publicada com o apoio do Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário em parceria com a UNESCO.
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Porque eu bem sei os pensamentos que penso de vós, diz o Senhor; pensamentos de paz, e não de mal, para vos dar o fim que esperais.
(Jeremias 29:11)
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