Quais são as estratégias da Indústria brasileira de games para conquistar o público

— Foto: Montagem sobre foto de Cenile Bingol/Getty

Para utilizar uma analogia familiar ao tema, é possível descrever a indústria brasileira de videogames como uma criatura mítica, de gigantesca abrangência e longos e numerosos tentáculos. É difícil definir a intensidade de sua força, mas é impossível negar sua grandeza. Seu alcance é imprevisível e pode atravessar fronteiras. Boa parte da população, porém, jamais teve contato direto com ela ou desconhece sua existência.

É uma contradição curiosa, dado o alcance atual dos jogos eletrônicos pelo país e a importância cada vez maior que esse ramo do entretenimento ocupa nas rotinas e mentes do público de todas as idades, principalmente o jovem. Se existe uma indústria, por que os produtos criados por empresas nacionais não estão entre os mais conhecidos e consumidos pelos brasileiros? Essa é apenas uma de muitas questões sem resposta quando se avalia o impacto desse business.

De acordo com um mapeamento recente da Abragames (Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais), existem 1.042 estúdios em atividade espalhados por todos os estados da Federação - mas o número deve ser bem maior, já que há poucos meses não existia a formalização do trabalho de desenvolvimento de jogos no país. Essas empresas produziram mais de 2.600 jogos próprios entre 2020 e 2022.

“Hands of Timber”, do Woodwork Game Studio, formado por estudantes do curso de Jogos Digitais da PUC-SP — Foto: Divulgação

“O Brasil é um polo de desenvolvimento da América Latina, e nesse momento todas as regiões têm empresas fazendo jogos”, afirma Carolina Caravana, vice-presidente da Abragames, que credita a evolução do segmento a um círculo virtuoso, estimulado pela consolidação dos games no cotidiano do brasileiro. “Jogar faz parte da cultura popular. A partir do momento em que a pessoa tem acesso ao game, pode pensar em trabalhar com isso”, explica. “Como essa barreira tem sido rompida, cada vez mais novos entrantes começam a empreender.”

Nem todo game pode ser considerado um produto comercial, pelo menos não na ótica de parte dos criadores autodenominados “independentes”. “Tem uma grande parcela de empreendedores que querem ser sustentáveis com tamanho pequeno e potencializar faturamento, mas sem necessariamente virar uma grande corporação, uma empresa transnacional”, acrescenta Caravana.

Um exemplo de operação de pequeno porte e alta produtividade é o JoyMasher. Formado pela dupla Thais Weiller e Danilo Dias, o estúdio baseado em Curitiba produziu vários títulos de temática retrô desde que começou suas atividades em 2012, quando ambos trabalhavam em outros empregos.

“Embora tivéssemos o sonho de viver disso, parar de trabalhar parecia adicionar uma pressão que não seria condizente com fazer jogos bons”, conta Weiller. “Então, de dia trabalhávamos em nossas escalas normais de oito horas, e de noite e nos fins de semana ‘descansávamos’ fazendo jogos.”

De tempos para cá, desenvolver games no Brasil tornou-se uma possibilidade viável como nunca. Além da acessibilidade a ferramentas gratuitas, existe um caminho facilitado para o lançamento dos jogos, por meio de marketplaces digitais, como a loja online Steam, que vende jogos para PC, e a Google Play, para dispositivos móveis. Cursos superiores em faculdades são numerosos e apoiam alunos a começarem a empreender ainda dentro da sala de aula.

É o caso do Woodwork Game Studio, formado por estudantes do curso de Jogos Digitais da PUC-SP. “A gente começou com a premissa: vamos fazer games que a gente goste de jogar”, explica o diretor de negócios Pedro Oliveira, 22 anos. A equipe de 14 integrantes, formada por jovens programadores e artistas, funciona em esquema colaborativo e ainda não recebe por seus trabalhos. O portfólio da empresa novata apresenta os projetos criados como trabalhos acadêmicos pelos alunos. Um desses, “Hands of Timber”, será publicado oficialmente pela publisher brasileira QUByte em 2025.

Olimpio Neto, do Petit Fabrik: “A receita de um jogo ‘AAA’ poderia rodar a cidade de Manaus por um ano” — Foto: Divulgação

Além dos estímulos dos professores, o time da Woodwork aproveitou a capacitação do Crie Games, um projeto de aceleração do Sebrae focado em mentorias com especialistas. “Foi bem importante. Eu saí com outra cabeça em termos de games e negócio”, diz Oliveira, que vai se graduar no fim do ano.

“Existem mais jovens desenvolvedores fazendo games do que há dez anos, porque a barreira de entrada não é tão alta”, diz Marcelo Gimenes Vieira, editor do site The Gaming Era. Entretanto, ele aponta que a profissionalização ainda é uma lacuna a ser preenchida. “Existe essa aura romântica de que game é arte e cultura, mas também é produto, e às vezes os criadores se esquecem disso”, diz ele. “Falta aos estúdios brasileiros uma cabeça pensante em business, e talvez esse pensamento muito purista seja um problema.”

A situação pode evoluir com a recente aprovação do Marco Legal dos Games, conjunto de leis que regula a fabricação, importação, comercialização, desenvolvimento e uso comercial de jogos eletrônicos no Brasil (jogos de azar do tipo bets não estão incluídos). A medida visa favorecer os pequenos criadores que jamais se viram motivados a legalizar suas empreitadas criativas.

“O foco é fazer com que o setor público entenda como funciona o ecossistema de jogos, para que as melhores decisões sejam tomadas e as ações sejam efetivas”, afirma Caravana.

Atualmente, o conceito de criação de games no Brasil é amplo e não necessariamente passa pelo entretenimento. Além de jogos casuais para celulares e títulos autorais para computadores e consoles (PlayStation, Nintendo e Xbox), os estúdios nacionais produzem “advergames” (para campanhas publicitárias), “serious games” (com viés educativo), simuladores profissionais e recursos variados de gamificação para empresas, além da forte presença no segmento de outsourcing.

Se levado em consideração apenas o entretenimento, seria possível uma desenvolvedora sobreviver vendendo games baseados em suas IPs (propriedades intelectuais)? Quando se consideram estúdios de médio porte já consolidados, nota-se que é um segmento especialmente jovem, com empresas com não mais de dez anos em atividade. Dentre essas, boa parte já passou por falências ou processos de renascimento até encontrarem certa estabilidade.

Carolina Caravana, da Abragames: “Todas as regiões [do Brasil] têm empresas fazendo jogos” — Foto: Divulgação

É o caso da paulistana Mad Mimic. Fundado por desenvolvedores formados em cursos superiores de games, o estúdio tentou várias iniciativas até emplacar seu primeiro projeto autoral, o jogo de ação cooperativa “No Heroes Here”, lançado em 2017.

Autopublicada, a empreitada foi fomentada por um edital da Prefeitura de São Paulo e estimulada por bons feedbacks em eventos internacionais. “Foi nosso primeiro case de sucesso, em que a gente errou tudo que podia e também acertou várias coisas, aprendendo como consertar nossos erros”, diz o CEO do estúdio, Luis Fernando Tashiro.

O projeto mais recente, a aventura estrelada por piratas “Mark of the Deep”, será lançado para PC e consoles nos próximos meses, pelo preço médio de R$ 40. Segundo Tashiro, a meta otimista de faturamento após um ano é de US$ 1 milhão, com a maior parte da receita proveniente de vendas fora do Brasil.

Com 40 funcionários contratados em esquema híbrido e um escritório na Vila Mariana servindo como base, a Mad Mimic sonha em alcançar sustentabilidade a longo prazo exclusivamente com suas criações originais. “Nosso objetivo é ter pelo menos de três a cinco anos de caixa”, diz Tashiro. “Assim, conseguimos manter a empresa fazendo os nossos próximos jogos e, a partir daí, vamos gerando receita.”

Mesmo com o foco em jogos próprios, a Mad Mimic ainda se vê obrigada a alocar um terço de sua equipe para a execução de trabalhos a outras empresas, para manter um fluxo constante de faturamento. A prática, diz, é praxe entre estúdios de tamanho médio. “O Brasil é um país de outsourcing, a gente exporta muito serviço”, afirma Tashiro.

Uma das tendências mais expressivas da indústria de desenvolvimento do país é a especialização no fornecimento de serviços artísticos e técnicos a projetos internacionais de grande orçamento. É o caso do estúdio pernambucano Puga, adquirido em 2022 pela Room 8 Group, conglomerado de origem ucraniana especializado em outsourcing.

Luis Fernando Tashiro, da Mad Mimic, espera faturar US$ 1 milhão com “Mark of the Deep” — Foto: Nilani Goettems/Valor

“Para mim, a empresa nunca foi um filho, sempre foi um negócio”, afirma Rodrigo Carneiro, que foi CEO da Puga e atualmente exerce o cargo de head of market na Room 8. “Como empreendedor, minha visão é de desenvolvimento de negócios que possam atrair investidores ou interessados em aquisição. Se consigo criar algo que tenha a capacidade de ser vendido ou que chame atenção de investidores, isso quer dizer que o negócio está no caminho certo.”

De acordo com Carneiro, a compra da Puga por um grupo estrangeiro foi um resultado condizente com o planejamento estratégico pavimentado ao longo dos anos. “A gente sempre preparou a empresa para o crescimento e a venda foi uma consequência”, afirma. “Em 2018, éramos só quatro pessoas. Quando vendemos a Puga em 2022, já tínhamos mais de 150 pessoas.”

Inevitavelmente, diferenças culturais e processuais afloram quando uma empresa de menor porte se torna parte de uma corporação internacional. “Em uma startup, você sabe o nome de todo mundo, tem sua forma de trabalhar, uma visão do todo”, diz Carneiro. “Estranhei ao sair de uma startup para uma corporação com milhares de funcionários, em que você precisa colaborar com centenas de pessoas, com muitos processos e políticas bem definidas. Mas, com o tempo, vai entendendo que faz todo sentido.”

Neste ano, outra empresa de outsourcing nordestina passou por um processo semelhante de reestruturação internacional. A Kokku, também do Recife, tornou-se parte do conglomerado britânico de mídia OV Entertainment. Não por coincidência, tanto Puga quanto Kokku surgiram das cinzas da extinta Jynx Playware, produtora de jogos fundada na capital pernambucana no início dos anos 2000.

A Kokku teve seu primeiro reconhecimento mundial executando serviços artísticos ao jogo “Horizon Zero Dawn”, sucesso da plataforma PlayStation lançado pela Sony. “Ninguém esperava que empresas do Brasil pudessem fazer parte de uma produção tão grande. Isso nos lançou a um status inédito, depois de seis anos batalhando, errando, quase indo à falência”, conta Thiago de Freitas, fundador da Kokku, que após a fusão passou a exercer o cargo de CEO da OV.

Apesar de ser baseado na Inglaterra, o grupo OV (que além da Kokku inclui o estúdio argentino de tecnologia 3OGS) planeja adquirir outras empresas sul-americanas, expandindo seu alcance para segmentos como cinema e TV. “O futuro do desenvolvimento de entretenimento vai sair da América do Sul, porque agora o mundo todo está investindo nos talentos e empresas da região”, aposta Freitas.

Mauricio Longoni (sentado, à esq.) e parte da equipe da Epic Games Brasil: foco no ecossistema de ‘Fortnite’ — Foto: Divulgação

“Ao chegar à maturidade, logo começaremos a produzir as nossas propriedades intelectuais, que também serão disruptivas suficientes para fazer um grande abalo no mercado. Vai ser um processo natural.”

Outra aquisição recente que mexeu com as estruturas da indústria local foi o da produtora Aquiris, de Porto Alegre, que após um aporte da publisher americana Epic Games passou a se chamar Epic Games Brasil.

Na última década, a Aquiris estabeleceu-se como um estúdio de prestígio internacional, graças à boa repercussão de “Horizon Chase”, simulador de corridas de carros inspirado na estética dos anos 90. Agora, sob nova direção, a empresa deixa suas propriedades em segundo plano para exercer o papel de braço de desenvolvimento da Epic, sendo responsável por criar conteúdos sazonais para “Fortnite”, um dos jogos online mais populares do mundo.

“A Aquiris já estava trabalhando com a Epic em alguns projetos, e em certo momento fez sentido unirmos forças”, explica Mauricio Longoni, anteriormente CEO da Aquiris e atual diretor executivo da Epic Games Brasil. “Continuaremos a dar suporte aos nossos jogos antigos, mas nosso foco agora é apoiar o ecossistema de ‘Fortnite’ por causa do crescimento que isso pode trazer. É um game de apelo global e o Brasil é um dos países que mais o joga.”

“Temos aqui o mesmo tipo de talento que vemos em qualquer mercado mundial, e esse investimento da Epic é a prova da qualidade desse talento”, afirma Longoni. “É o começo de um novo capítulo na história do desenvolvimento brasileiro, em que as pessoas têm a oportunidade de trabalhar em grandes jogos, aprender e desenvolver suas experiências, e isso só vai crescer a partir daí.”

De acordo com a Abragames, ainda existe dificuldade em mapear estúdios distantes dos principais centros, em especial dos estados do Norte e Centro-Oeste. Uma exceção é o Petit Fabrik, de Manaus, que se destaca como o mais conceituado da região conhecida como Amazônia Legal.

Temos aqui o mesmo tipo de talento que vemos em qualquer mercado mundial” — Mauricio Longoni

“Para efeito de comparação, a Finlândia tem 5 milhões de habitantes e uns 250 estúdios de jogos. O Amazonas tem 4 milhões de habitantes e não tem 5 estúdios formalizados”, diz Olimpio Neto, CEO da Petit Fabrik. “Gasta-se muito para treinar a população para trabalhar em fábricas na Zona Franca. Com o mesmo investimento na indústria criativa, cuja matéria-prima é inteligência e criatividade, daria para transformar as vidas de muitas gerações. Mas ninguém discute isso.”

O executivo crê que investimentos em empresas da região amazônica teriam potencial transformador. “Todo mundo gosta de falar que a Amazônia precisa de uma nova matriz econômica. A receita de um jogo ‘AAA’ [de grande orçamento] poderia rodar a cidade de Manaus por um ano. E eu não preciso derrubar uma única árvore para criar um jogo global”, diz Olimpio, que será um dos curadores de uma mostra com ênfase em jogos desenvolvidos na região Norte - a Gamecon Acre, que acontecerá em Rio Branco de 31 de outubro a 2 de novembro, com entrada gratuita ao público.

Historicamente, os eventos apresentam-se como alternativas eficazes para o consumidor final ter contato com produções nacionais. Em junho, a segunda edição do Gamescom Latam (antigo BIG Festival), em São Paulo, ofereceu em sua programação cerca de 80 jogos produzidos no país. De acordo com a organização, das mais de mil empresas registradas na área de business, 636 eram brasileiras.

Outro evento que costuma dar espaço aos estúdios independentes é o tradicional Brasil Game Show (BGS), cuja 15ª edição, nesta semana, vai até o dia 13. Na concorrida área “Avenida Indie”, pequenos produtores se amontoam em estandes enfileirados, mostrando suas criações ao público.

“O objetivo desse espaço é dar destaque às produções nacionais, gerar oportunidades de negócios e levar ao público opções interessantes que não costumam ter a mesma visibilidade dos ‘AAA’”, conta Marcelo Tavares, CEO da BGS. A promessa para este ano é a apresentação de jogos de mais de 50 estúdios, em maioria nacionais.

Apesar de tantas barreiras já transpostas, o maior desafio da indústria de desenvolvimento nacional ainda parece de difícil superação: convencer a população a apreciar e consumir os games nacionais.

“Fazer o jogo brasileiro cair na graça do povo é um negócio distante, porque a nossa cultura ainda é muito sobre jogos casuais de celular ou títulos grandes para consoles, como ‘Fifa’ e ‘Call of Duty’”, afirma Lucas Toso, produtor do podcast “Controles Voadores”, focado no mercado indie. “Mas o cenário independente não precisa de 200 milhões de brasileiros jogando suas criações. Se um estúdio conseguir vender 10 mil cópias de seu jogo, ele já vai conseguir bancar o próximo.”

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Versículo do Dia:
E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei, para que o Pai seja glorificado no Filho.
(João 14:13)
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