A cada hora e meia, uma mulher é assassinada por um homem no Brasil, apenas por ser mulher. Keila Pereira, Adenilde Guimarães, Lucilene Barbosa, Taciane dos Santos, Nathalia Silva: uma rápida busca em dois grandes portais de notícias nos traz cinco vítimas das últimas vinte e quatro horas (enquanto escrevemos esse texto) – e essas são apenas as que chegaram à grande mídia.
É a esse crime que dá-se o nome de feminicídio, tradução de femicide (femicídio) mais usada na América Latina.
O termo passou a ser reconhecido principalmente em março desse ano, com a sanção da lei que o tornou uma qualificadora do homicídio, mas ainda é pouco discutido fora de círculos especializados, como os do Direito e da militância feminista, onde surgiu originalmente.
Estima-se que, entre 2001 e 2011, tenham ocorrido mais de 50 mil homicídios motivados por misoginia: isso torna o Brasil o sétimo país que mais mata mulheres no mundo.
Os números chocam e causam questionamento, e embora não haja uma origem única, podemos buscar respostas em nossa história: “Desde que fomos descobertos, tivemos a presença dos portugueses, que tentaram escravizar os índios e não conseguiram.
Depois trouxeram os negros da África, que foram submetidos – as mulheres negras tinham que obedecer ou apanhar”, contextualiza a delegada Vilma Alves, de Teresina. “Segue-se os cafezais e seus senhores, sempre com o poder macho, o açúcar e os senhores de engenho, e a época dos grandes comerciantes, sempre o poder do homem ligado ao poder financeiro.
Nessa época, o homem era dono da mulher ao casar, podia bater, surrar, até matar sem consequências. O machismo está arraigado na nossa cultura, onde o homem teve o poder durante toda nossa história”.
A herança deste passado se reflete nos dados atuais da pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), que mostra que as mulheres negras representam 61% das vítimas de feminicídios no país.
Stela Meneghel, pós-doutora em medicina de Porto Alegre com especialização em saúde pública e gênero e professora da UFRS, também relaciona essa violência, que tem como objetivo controlar as mulheres, com processos de colonização.
Além do contexto histórico do Brasil, Meneghel destaca as motivações da violência de gênero em si: “Não é por acaso que a violência contra a mulher existe. Não é por causa de distúrbios mentais dos homens ou de uma vontade incontrolável de sexo, por psicopatologias, ou mesmo, digamos, porque esses conflitos seriam comuns a relacionamentos” enfatiza.
Segundo ela, a violência é uma maneira de se adestrar as mulheres para que elas se mantenham numa posição de inferioridade e de adestramento.
Seria por isso que o ápice de um contínuo ou de uma escalada crescente de violência é a morte de algumas mulheres. “Os femicídios decorrem disso. Não acontecem por acaso e não são uma questão de relação interpessoal, mas uma questão política, uma questão social mais ampla”, completa.
Da caça às bruxas do passado ao crescente infanticídio de meninas em algumas sociedades e aos assassinatos de mulheres supostamente em defesa da honra, não há nada de novo no feminicídio. Na galeria abaixo, outros exemplos de diferentes situações do crime:
Dentro do próprio Brasil, é possível observar uma variação considerável dos números do crime: enquanto no Espírito Santo, em primeiro lugar no ranking pela pesquisa do Ipea, são assassinadas 11 mulheres a cada 100 mil, no Piauí o número cai para 5.
Para investigar a realidade brasileira, nossa reportagem visitou pelo menos um estado em cada região, buscando singularidades regionais.
Duas das cidades que visitamos foram as capitais dos estados nos extremos da lista, Vitória e Teresina, para tentar entender o que causa a disparidade entre elas.
Na capital capixaba, a pergunta “por que vocês estão em primeiro lugar?” parece ser feita com frequência, mas segue sem resposta: “Todo mundo pergunta isso, mas nós não temos nenhum estudo de causa, nada que explique porque os números aqui são tão mais altos”, relata Bianca Barcelos Rodrigues, do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Espírito Santo.
A violência, de forma geral, é alta no estado, que também está em segundo lugar em assassinatos de adolescentes entre 16 e 17 anos. Já na capital piauiense, as teorias sobre ocupar o último lugar da lista são diversas.
Para a delegada Eugênia Villa, um dos fatores que contribuem é a subnotificação desses casos: “Desde março deste ano, nós começamos um banco de dados detalhado sobre feminicídio, que estamos preenchendo com todas as ocorrências do estado durante o ano. Em 2016, pode ter certeza que nós pularemos para o primeiro lugar da lista”.
A socióloga recifense Ana Paula Portella, apesar de destacar que nunca estudou o Piauí em específico, especula com base em seu trabalho no interior de Pernambuco: “A violência contra a mulher ocorre quando ela desafia as ordens que estão impostas para ela.
Em lugares conservadores, por elas não saberem ou não terem coragem de desafiar a sociedade ou os maridos, elas são violentadas e não reagem, então não são mortas”. Já para Dra. Vilma, o número seria resultado do trabalho histórico dos movimentos de mulheres piauienses: “O Piauí é o estado em que as políticas públicas tem maior atividade de ações integradas, que outros estados não tem.
Por exemplo, assim que a lei Maria da Penha foi sancionada, os movimentos de mulheres se reuniram com a delegacia da mulher e com deputadas e exigiram a criação do Juizado Especial da Mulher, o que não foi feito em outros estados.
Na década de 1980, fomos os primeiros a criar o Conselho Municipal de Defesa do Direito da Mulher, antes da Constituição. Nós fazemos um trabalho de conscientização”, defende.
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